Capa da Isto É destaca ” A cura do câncer”: novos métodos de tratamento e prevenção, como terapia celular, que salvou brasileiro, leva esperança para pacientes
A
saída do funcionário público mineiro Vamberto Luiz de Castro, de 63
anos, do Hospital das Clínicas da USP, em Ribeirão Preto, andando
devagar, mas sorridente e satisfeito com a vida, já é uma marco
histórico da medicina brasileira. Acometido por um linfoma, um câncer no
sangue do tipo não Hodgkin de célula B, desde 2017, considerado um
paciente em estágio paliativo e sofrendo com fortes dores só aliviadas
pela morfina, Vamberto passou por um procedimento genético até então
inédito na América Latina, chamado terapia celular, em que se altera no
laboratório o DNA das células T de defesa retiradas do próprio paciente.
As células modificadas voltam para o corpo e favorecem uma reação
imunológica para combater a doença. A técnica usada, consagrada nos
Estados Unidos, a CAR-T, é uma solução médica em fase de testes, cujos
riscos ainda estão sendo reconhecidos. Vamberto só passou por ela porque
era considerado um paciente compassivo, que tinha uma última chance de
sobreviver, avaliada pela família e pela Comissão de Ética do hospital.
Os resultados, porém, foram altamente positivos. Exames pós-tratamento
mostram que dores e outros sintomas e as células tumorais desapareceram.
Apesar de impressionante, o uso da terapia celular — capaz, pelo que
se vê, de interromper e regredir totalmente uma metástase – é só mais
uma espantosa surpresa no aumento do arsenal contra o câncer nos últimos
tempos. Em todas as frentes, há uma evolução notável nos tratamentos,
que começam com a precocidade e a precisão do diagnóstico com sistemas
inteligentes e equipamentos poderosos e contam cada vez mais com
recursos para aumentar a sobrevida de uma pessoa em uma década ou até
mesmo para acabar de vez com o tumor. Fala-se hoje em oncologia de
precisão, em que a terapia é desenhada especificamente para o paciente, a
partir de suas informações clínicas e genéticas do tumor.
No caso da CAR-T é assim que funciona. É um tipo de tratamento
personalizado em que se leva em consideração a assinatura molecular do
câncer para que se possa fazer uma arma específica contra ele. As
células T modificadas com antígenos são usadas apenas no próprio
indivíduo que as cedeu. “Se soubermos qual é a estrutura do tumor, a
fechadura, podemos criar uma chave adequada para tratar o paciente”, diz
o médico Renato Abreu, diretor do Centro de Terapia Celular do Hospital
das Clínicas, responsável pelo tratamento de Vamberto. “E nesse caso a
CAR-T foi um sucesso absoluto”.
“É uma terapia muito promissora e tem potencial para tratar diversos
outros tipos de tumores”, diz a médica Yana Novis, coordenadora da
onco-hematologia do hospital Sírio-Libanês. “Há estudos sobre seu uso no
linfoma Hodgkin, mieloma múltiplo (que atinge a medula) e glioblastoma
(um tipo de câncer no cérebro comum e agressivo), mas as técnicas ainda
não têm a aprovação da FDA.”
Por enquanto, nos Estados Unidos, a terapia
celular é oferecida para o linfoma não Hodgkin de célula B e para a
leucemia linfoblástica aguda e, mesmo assim, em casos extremos, para
quem já vez diversos tratamentos prévios e passou por quimioterapia,
imunoterapia e tentou tudo que se conhece. Pacientes tratados com
células T modificadas nos Estados Unidos, como a garota Emily Whitehead,
hoje com 14 anos, continuam vivos e apresentando um quadro de
recuperação. Emily foi diagnosticada com leucemia linfoblástica aguda em
2012, aos seis anos, e ficou à beira da morte. A cura de um câncer é
atestada depois de cinco anos de desaparecimento dos tumores.
Seja
como for, não se imagina uma panaceia no tratamento do câncer, uma
solução para todos os males. Junto com a terapia celular, não faltam
outras soluções personalizadas. No leque de tratamentos inovadores e
desenvolvidos sob medida há drogas chamadas de “alvo dirigidas”, que
funcionam como mísseis destruidores de células cancerígenas e que atuam
contra proteínas produzidas no próprio tumor. A chave do sucesso é
reconhecer exatamente de que tipo de câncer se trata, quais as proteínas
e anomalias associadas a ele e usar os recursos tradicionais e de
engenharia genética disponíveis para cada caso. Cada tumor tem a sua
assinatura no DNA e o câncer não é uma só doença, mas inúmeras. O que se
busca é um tratamento mais focado em que se detecta a presença de
determinadas moléculas derivadas do processo cancerígeno e se procura
oferecer uma solução integrada compatível com o organismo do paciente.
Mutações e defeitos
“A oncologia generalista não faz mais sentido”, diz o médico Artur
Katz, diretor geral de oncologia do hospital Sírio Libanês. “O caminho é
a precisão e o grande passo para essa evolução é o aperfeiçoamento de
técnicas de patologia molecular que permitem o reconhecimento de
alterações nos tumores que podem ser exploradas pelo tratamento”. Esse
tipo de abordagem tem funcionado bem contra o câncer de pulmão de não
pequenas células, por exemplo. Nesse tipo de tumor são reconhecidos em
laboratórios de patologia algumas mutações e defeitos como a EGFR, ALK,
ROS1 ou HER2. Uma vez identificado o defeito, existem medicamentos
específicos que podem ser empregados com excelentes resultados. Não por
acaso, cada vez mais tipos de cânceres são enfrentados com a ingestão de
um ou mais comprimidos diários.
Uma pílula contra o câncer de próstata foi apresentada no último
congresso anual da American Urological Association. A droga em questão é
a enzalutamida, que bloqueia o efeito da testosterona em células de
indivíduos com tumores avançados. Pesquisa feita com 1125 homens que
receberam uma injeção de medicamento supressor de testosterona e um
comprimido por dia de enzalutamida mostrou que o risco de morte pela
doença caiu em 33%. Outro medicamento que tem dado resultado é a
apalutamida, já aprovada no Brasil, que reduz o risco de metástase ou
morte em 72% dos casos de tumor na próstata.
Um medicamento lançado pelo laboratório Bayer e aprovado recentemente
no Brasil, chamado larotrectinibe, cujo nome comercial é Vitrakvi,
também revela bem essa tendência. É uma droga que pode impedir a
evolução de qualquer tipo de câncer sólido (que não surge nas células do
sangue), seja de mama, pulmão, cérebro ou intestino, desde que exista
uma mutação incomum, conhecida como fusão do gene NTRK. Estima-se que 1%
dos tumores sólidos apresente essa anomalia. Se a fusão for reconhecida
em laboratório, o Vitrakvi se torna uma poderosa opção de tratamento e
faz desaparecer os sintomas da doença. Normalmente indicado para casos
em que o câncer se espalhou pelo organismo e não há outras opções
terapêuticas, ele bloqueia a ação de substâncias que aceleram o
crescimento de células cancerosas.
Menos agressivo que a quimioterapia, o Vitrakvi vem sendo usado com
sucesso no Brasil pelo garotinho Levy Batista Nogueira, de 2 anos, que
sofre de fibrossarcoma infantil, câncer raro e maligno que atinge os
tecidos moles. Sua mãe, a médica cardiologista Monique Nogueira, diz que
Levy toma o remédio desde novembro do ano passado e leva hoje uma vida
normal. “Meu filho não apresentou nenhuma reação ao medicamento”, diz
Monique. O caroço que comprometia a vida do garoto teve uma redução de
mais de 70%. Com a estabilização tumoral ele não será submetido a um
procedimento cirúrgico no momento. O tratamento de Levy está sendo
bancado pelo laboratório farmacêutico.
A evolução do tratamento do câncer de mama, que atinge uma em cada
oito mulheres, também dá motivos para otimismo. Segundo o Instituto
Nacional de Câncer (Inca), cerca de 60 mil novos casos da doença são
diagnosticados anualmente no Brasil. Em 20% deles, por exemplo, aparece
uma proteína chamada HER-2, que aumenta a agressividade do tumor. Há
pouco tempo a presença da HER-2 era apenas um motivo de preocupação com o
agravamento do caso. Agora é uma oportunidade de cura. O uso de
medicamentos à base de anticorpos monoclonais, que atuam diretamente
contra as células tumorais, é uma pequena revolução. Um medicamento
injetável específico chamado T-DM1, desenvolvido pela Roche e aprovado
em julho pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reduz
em 50% o risco de recorrência do câncer ou de morte do paciente, segundo
o estudo Katherine, publicado no New England Journal of Medicine.
Outra terapia alvo conhecida como inibidora de CDK, que interrompe a
atividade de enzimas promotoras de células cancerosas chamadas de
quinases, também vem sendo usada com sucesso em alguns tipos de câncer
de mama. O mais agressivo deles, chamado de triplo negativo, só era
tratado por quimioterapia. As pacientes viviam em média 15 meses. Mas,
agora, com drogas “alvo dirigidas” e imunoterapia, outro tratamento que
tem se tornado mais inteligente e eficaz, a sobrevida aumentou para 25
meses. Usa-se o medicamento atezolizumabe, aprovado pela Anvisa em maio,
nos casos em que existe a proteína PD-L1, que esconde as células
tumorais.
O presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Sergio
Simon, diz que é fundamental, hoje, fazer testes genéticos para procurar
alterações celulares a fim de fazer uma oncologia precisa. “Você pode
encontrar muitos defeitos para os quais não existem remédios, pode não encontrar nenhum defeito e pode
encontrar defeitos que podem ser explorados”, afirma. Há dez anos a
escolha do tratamento era mais simples e ineficaz, mas hoje prevalece a
terapia agnóstica, em que não importa qual é o tipo do tumor, ou onde
ele surge e sim o defeito que apresenta. “Não há uma conduta de trabalho
único, como costumava acontecer, e estamos cada vez mais distantes de
uma época em que havia simplicidade na definição do tratamento”, afirma
Simon.
Marcadores genéticos
O que se vislumbra para daqui três a cinco anos é a elaboração de
painéis com marcadores genéticos específicos que fazem o seqüenciamento
das células doentes em busca de mutações para cada paciente. Esses
painéis guiarão o tratamento na escolha de quimioterápicos,
imunoterápicos, drogas “alvo dirigidas” ou no desenvolvimento de
terapias CAR-T, que chegarão a diversos tipos de cânceres sólidos
especialmente agressivos e com prognósticos ruins, como no cérebro ou no
pâncreas. O tumor de pâncreas, por sinal, por sua dificuldade de
detecção, malignidade e altas taxas de mortalidade, merece especial
atenção.
Exames de DNA têm permitido combater com mais eficácia a doença em
pacientes que apresentam as alterações genéticas BRCA 1 ou BRCA 2,
característica de 7% dos afetados pela doença. Uma droga chamada
olaparibe, da Astra Zeneca, já usada contra nódulos malignos na mama,
interrompeu a progressão do câncer de pâncreas num teste clínico em
voluntários com metástase. Descobriu-se que esse tipo de câncer pode
estar associado à proliferação no órgão (que secreta enzimas digestivas
no intestino delgado), de fungos do gênero Malassezia, encontrado no
couro cabeludo e causador da caspa. Um estudo publicado pela revista
Nature revelou que os fungos penetram no pâncreas e se multiplicam três
mil vezes mais do que o tecido saudável.
Não há dúvida de que a medicina tem obtido vitórias decisivas contra o
câncer e que o futuro é promissor. Mas existe uma importante barreira
para o acesso às novidades terapêuticas: o custo. As novas drogas
dirigidas atingem preços inacessíveis para a maioria dos doentes. O
tratamento com o Vitrakvi, por exemplo, sai por US$ 32,8 mil por mês e
com o concorrente Rozlytrek, da Roche, também eficaz nos casos em que
existe a fusão do gene NTRK, o custo chega a US$ 208 mil por ano. Com a
terapia celular a situação não é muito diferente.
A aplicação da técnica CAR-T nos Estados Unidos chega a custar US$
450 mil. No Brasil, no Hospital das Clínicas da USP, em Ribeirão Preto, o
custo ficou em 10% desse valor. De qualquer forma, mais do que o preço,
o que importa no tratamento do câncer é a esperança. Depois do êxito da
terapia em Vamberto, o médico Renato Cunha passou a receber até 800
pedidos diários de consultas e pareceres, o que mostra a importância
dessa nova conquista médica brasileira. Inúmeros pacientes sem
perspectivas têm agora uma base sólida em que se apoiar para tentar
recuperar a saúde. Um novo caminho de cura se abriu. E o que se espera é
uma longa vida para Vamberto.
Capa da Isto É destaca ” A cura do câncer”: novos métodos de tratamento e prevenção, como terapia celular, que salvou brasileiro, leva esperança para pacientes
Reviewed by Canguaretama De Fato
on
18.10.19
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